quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

BALAIO DE "GATOS"

Texto retirado do site Olheiros e escrito por Maurício Vargas. Muito bom, vale a pena ler.

A oferta é tentadora, simples e aparentemente lícita. Por uma quantia pequena, de aproximadamente R$ 500 (que para a maioria das famílias às quais a proposta é feita, não é nada pequena e pode significar até mesmo um mês de salário), o empresário que acaba de se apresentar promete “ajeitar a documentação do menino” e colocá-lo em um clube grande. Tudo porque, segundo o engravatado olheiro com carregado sotaque da capital, o garoto “tem tudo para estourar, mas bem que podia ser uns dois anos mais novo”.

É assim, normalmente com a aquiescência dos pais, que não sabem direito com o que estão lidando, que nascem todos os dias novos gatos no futebol brasileiro. A esperança de sorte melhor para a família de baixa renda que pouco pode oferecer ao garoto em termos de futuro reside na habilidade dele com a bola nos pés, e na do procurador em esconder a falsificação. Mais do que uma tentativa de burlar a lei, o fenômeno do gato é a constatação de uma mazela social profunda, transformando o esporte em válvula de escape e promessa de redenção financeira.

Se a razão e a forma com que eles surgem é conhecida, por que então eles continuam existindo? Ou ainda, será que todos os casos foram detectados e todos os atletas em atividade estão com a ficha limpa? Por que, além do Brasil, é tão comum ouvirmos histórias de adulteração de idade na África? Nas próximas linhas, o Olheiros tenta desvendar os mistérios por trás da falsificação de documentos, relembra os principais casos e busca uma perspectiva para o futuro deste verdadeiro balaio de gatos.

Matando no berço
Os casos hoje são vários e fica difícil até puxar todos pela memória. Mas até a década de 80, os gatos não eram tão comuns, ao menos nos gramados brasileiros. O que aconteceu no início dos anos 90 foi a valorização do jogador de futebol, com as cifras que envolvem seus salários e multas rescisórias chegando a valores estratosféricos. Some-se a isso a maior concorrência na prospecção de garotos, que levou os clubes a procurarem talentos em territórios distantes pelo país, e a necessidade premente de revelar jovens mais cedo, graças ao aumento das transferências para o exterior. Todos estes fatores, temperados pela ganância dos “descobridores de talentos” e a conivência dos envolvidos no processo, faz com que seja difícil olhar hoje para uma promessa de destaque sem se perguntar se ela não está jogando numa categoria diferente da que deveria estar.

A situação já é tão comum que chega a ser encarada como “ossos do ofício” por quem vive no meio das categorias de base. O que acontece é que 95% dos casos descobertos, garantem, o são antes de o garoto virar profissional, reduzindo a quase zero o risco de um escândalo ou problemas judiciais. Nilson Gonçalves, gerente de futebol do Duque de Caxias e supervisor das categorias de base do Vasco durante muitos anos, conta algumas histórias curiosas.

“Certa vez, observamos um jogador do Americano e o levamos aos juniores do Vasco. Pelos documentos, ele teria 19 anos. Ao investigarmos no cartório, tudo batia. Mas a intuição me levou a pesquisar a maternidade onde ele nasceu. Foi lá que constatamos que ele realmente havia nascido dois anos antes”, lembra.Um dos episódios mais conhecidos por quem lida com o problema é o dos garotos de Marabá, cidade paraense distante 485 quilômetros da capital Belém. Um empresário que usava o nome da localidade como apelido garimpava garotos no interior do estado e colocava-os nas categorias sub-13 e sub-15 de times grandes de São Paulo, como Corinthians e Santos.

Durante uma edição da Copa Brasil Sub-15, realizada anualmente em Londrina, chamou a atenção o fato de que oito meninos do Corinthians eram nascidos na cidade. Depois, durante o Paulista da categoria, vários pais de atletas de outros clubes denunciaram a irregularidade à Federação Paulista de Futebol, que investigou e constatou a adulteração dos documentos. São apenas dois exemplos do que acontece no cotidiano dos clubes. O problema é quando a farsa não é descoberta antes da profissionalização e vem à tona só mais tarde.

O caso Sandro Hiroshi
É inevitável falar de gatos sem citar o atacante de ascendência japonesa que despontou no São Paulo após ser revelado pelo Rio Branco de Americana. O caso Sandro Hiroshi, por seus desdobramentos, é considerado o mais grave episódio de idade falsa do futebol brasileiro e, talvez, do mundo. Graças a ele, a CBF escapou por pouco de sofrer uma sanção da FIFA e teve de abrir mão da organização do Campeonato Brasileiro de 2000. O lado bom, se é que existe, é que foi possivelmente a partir daí que a estrutura foi reformulada para a implantação dos pontos corridos em 2003.

Natural de Araguaína, Hiroshi começou a carreira no Tocantinópolis e logo foi comprado pelo Rio Branco. Destacou-se no Paulista de 1999 e foi contratado pelo São Paulo, para substituir Dodô. No meio do Brasileiro, Botafogo e Internacional, que lutavam contra o rebaixamento, entraram na Justiça Desportiva pedindo os pontos das partidas contra o tricolor, em que o atacante havia atuado. Tudo porque a CBF, mediante um impasse entre os dois clubes anteriores do jogador, havia considerado seu passe “bloqueado”.

O que pouca gente se lembra, entretanto, é que a posterior ação na Justiça Comum do Gama, que seria prejudicado com toda a história, não tem nada a ver com a adulteração de idade. A falsificação dos documentos, aliás, só seria descoberta pela Folha de São Paulo meses depois, quando o jornal passou a investigar a verdadeira situação da inscrição do jogador na CBF. Hiroshi possuía, na verdade, dois anos a mais do que mostravam os documentos que utilizava, alterados ainda em 1994, nas categorias de base do Tocantinópolis, supostamente com autorização de seu pai.

Outros gatos famosos
De lá para cá, o fenômeno passou a chamar mais a atenção dos meios de comunicação, que começaram a veicular o que antes permanecia fora dos radares. Assim, tornaram-se mais comum histórias como a de Rodrigo Gral, gremista destaque do Sul-Americano Sub-20 de 1999, mas que mais tarde descobriu-se ter nascido em 1977, e não 1979, tendo então disputado o campeonato com 21 anos. Há também Anaílson, outro jogador revelado pelo Rio Branco que teve documentação adulterada. A reincidência, por mais que o clube tenha se provado inocente, custou ao Tigre um certo tempo de desconfiança quanto às suas revelações, culminando inclusive com a queda no número de negociações com grandes clubes, após o surgimento de nomes como Macedo, Flávio Conceição, Marcos Senna e Marcos Assunção.

Nilson Gonçalves, que também trabalhou na CBF, lembra ainda do atacante Emerson, do São Paulo, que em 2001 foi convocado para o Mundial Sub-20. Entretanto, a documentação levantou suspeitas, os médicos fizeram exames e uma pesquisa no cartório constatou que o jogador havia nascido quatro anos antes. O curioso é que o tricolor estava em processo de regularização de Emerson quando o Urawa Red Diamonds apareceu com uma proposta de US$ 1 milhão e, mesmo avisados de que ele tinha, na verdade, 23 anos, os japoneses mantiveram o interesse.

A vantagem de se atuar contra jogadores mais novos leva muitas vezes os destaques até a seleção brasileira. Cláudio, atacante que apareceu como promessa no Palmeiras em 2005, Michel Schmöller, revelação defensiva do Figueirense em 2007, e mais recentemente Leandro Lima, meia que despontou no São Caetano, foram flagrados, na maioria dos casos com dois anos de adulteração.

Foi também o caso de Carlos Alberto, hoje no Atlético-MG, que ainda no Figueirense admitiu ser mais velho do que mostrava sua identidade. Campeão mundial sub-20 em 2003, a revelação do volante chamou a atenção pelo tempo da falsificação (cinco anos de diferença) e pelo próprio jogador ter admitido a farsa. São muitas as histórias que poderiam ser citadas aqui, mas todas têm a mesma justificativa: a busca desesperada pela melhora das condições de vida.

Bichanos importados
A subespécie Felis silvestris catus, nome científico do gato, tem seus primeiros registros de domesticação por volta de 9.500 anos atrás, na África. Para muitos, não é coincidência que o continente seja o líder em casos de adulteração de idade no futebol. As condições existentes no Brasil que favorecem o aparecimento dos felinos são potencializadas nos países africanos, muito mais atingidos pela miséria e com menos recursos básicos como registro de nascimento e outros documentos à disposição da população. Além disso, as características fisiológicas únicas dos negros dificultam a identificação visual da idade, já que esta etnia demonstra menos o envelhecimento e disfarça melhor o desenvolvimento ósseo e muscular, aspectos utilizados na investigação de casos suspeitos.

No início da década, quase todo um grupo de jogadores nigerianos convocados para um período de treinamentos da seleção sub-20 foi posto sob suspeita de adulteração de idade. Eric Ejiofor, então zagueiro do Katsina United, confirmou que tinha mais de 20 anos. O escândalo foi maior porque, segundo os atletas, a federação sabia da idade de todos e, mesmo assim, decidiu convocá-los. O episódio por pouco não causou uma segunda suspensão da seleção nacional – em 1989, a FIFA baniu o país de competições de base após a confirmação de três gatos na seleção júnior.

Mas não é exclusividade das Super Águias vender gato por lebre. Seleções como Quênia, Marrocos, Camarões, Gana e Egito já tiveram seus casos, a ponto de todo jogador africano de destaque, do presente ou do passado, ser rotulado “gato” por parte da imprensa europeia. De Milla a Kanu, de Weah a Abedi Pelé, todas as lendas do futebol africano passaram a conviver com a sombra da dúvida, por mais que a mudança não dê mais tanto resultado nos profissionais. Os resultados das seleções nos últimos 15 anos, estes sim, devem permanecer sob suspeita ao longo da história.

Há casos em outros continentes, como no Asiático Sub-16 de 2008, quando oito seleções inscreveram jogadores com mais de 16 anos e foram retiradas da competição. Na Europa, o fato já não é tão comum, novamente graças às condições do meio: leis mais rígidas, condição financeira geral dos meninos melhor que a de brasileiros e africanos e fiscalização constante. Entretanto, o nome que talvez levante maior dúvida no mundo hoje é do prodígio estadunidense Freddy Adu. Nascido em Gana, foi um furacão através das categorias de base. Atualmente, já não rende tanto e tem seu nome constantemente ligado a prática felina.

O que fazer?
Mas afinal, se existem suspeitas, não há nada que se possa fazer. Sim, há. O MRI é um exame em que se submete o punho a uma tomografia, que analisa a idade óssea e a compara com a idade apresentada nos documentos. Apesar de eficaz, seu resultado não é 100% seguro. “Esse exame não pode dar uma certeza absoluta de que não haja já uma defasagem que a própria natureza se responsabilize. Este é um problema que ainda aflige as categorias de base e presenciei, até recentemente, resultados desastrosos nesse procedimento. Portanto, é um temor que ainda se tem”, afirmou o Doutor Turíbio Leite de Barros, fisiologista do São Paulo, em entrevista concedida ao Olheiros.

Para piorar, cada exame custa em torno de R$ 200, o que inviabiliza sua aplicação até mesmo nas categorias de base de grandes clubes, que podem contar com mais de 200 garotos. E este é apenas um dos fatores que favorecem a proliferação dos gatos, a saber: a falta de estrutura de clubes ou ligas amadoras funciona como “lavagem” dos documentos, que vão passando para frente como verdadeiros; a ganância de dirigentes, que conseguem valores mais altos por um atleta de 19 anos do que por um de 22; a desonestidade dos funcionários de maternidades, escolas e cartórios, que aceitam subornos; e a conivência da família, já que muitas vezes o jogador usa o documento do irmão mais novo.

Mas afinal, é possível acabar com os gatos? A própria CBF afirma ser tão difícil quanto acabar com a corrupção em outros meios sociais, como a política. Desde 2007, a Federação Paulista possui uma corregedoria para apurar denúncias de documentos falsos. Nos Mundiais de base, mesmo com os recursos financeiros disponíveis, a FIFA não faz o exame em todos os atletas – a seleção brasileira, por sua vez, tem feito em todos os convocados, prática copiada recentemente pela Federação Nigeriana.

Impedir o surgimento será praticamente impossível. Desvendar todos os casos, igualmente improvável. Não há como saber, ainda hoje, quantos atletas se destacaram e foram negociados graças à mudança de idade. É uma atitude que cobrará seu preço no futuro, quando a carreira tiver de ser encerrada (aparentemente) de maneira precoce. Mas que tem seu efeito prático já, quando este ou aquele clube ganha – ou deixa de ganhar – graças a tal prática. O caminho parece ser o da fiscalização reforçada, solução que soa simples demais em um país que, como se sabe, vive-se da impunidade. O ideal seria, certamente, corrigir os problemas sociais e estruturais, para não atacar eternamente a consequência sem se combater a causa, exatamente quando se enfrenta uma praga apenas com inseticida, pouco ligando para o que a trouxe ali.

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