“Macaco imundo. Volta para o circo. Tem de matar essa negrada.” Gritos ao árbitro Márcio Chagas em Bento Gonçalves na quarta-feira. “Macaco, macaco, macaco.” Gritos a Arouca em Mogi Mirim ontem. Só hipócritas fingem não ver o quanto é forte o racismo no futebol brasileiro…
"Macaco imundo. Preto safado."
"Volta para o circo."
"Tem de matar essa negrada."
Gritos da torcida em Bento Gonçalves na noite de quarta-feira.
O alvo, o árbitro Márcio Chagas da Silva.
No estacionamento, seu carro estava riscado amassado a chutes.
E com várias bananas em cima.
Humilhado, Marcio Chagas tirou fotos da situação vergonhosa.
Ao tentar ligar seu carro, ouviu um estouro.
Havia outras bananas no escapamento.
"Macaco, macaco, macaco."
Berravam torcedores do Mogi Mirim ontem à noite.
Arouca do Santos era a vítima dos insultos.
Duas situações que deixam claro a hipocrisia.
O Brasil é sim um país preconceituoso, racista.
Que se escandalizou com as ofensas a Tinga no Peru.
Quando torcedores do Real Garcilaso imitaram macacos quando Tinga pegavam na bola.
Ou quando uma banana foi oferecida a Roberto Carlos na Rússia em 2011.
Mas fez questão de se esquecer quando Danilo do Palmeiras em 2010.
Ele não só chamou Manuel do Atlético Paranaense de 'macaco'.
Ainda cuspiu no seu rosto.
O árbitro gaúcho ficou até aliviado ao chegar em casa.
Ele realmente pensou que poderia ser espancado em Bento Gonçalves.
"Percebi que corria um risco grave, que poderiam ter feito algo muito pior comigo. Não teve nenhuma polêmica no campo, o Esportivo até ganhou (3 a 2). Mesmo assim, torcedores gritavam "preto ladrão" e "volta para a selva" o tempo todo."
Além de 'tem de matar essa negrada'.
A situação aconteceu exatamente três semanas depois do episódio com Tinga.
Muito consciente, o volante do Cruzeiro desabafou.
"Todo mundo achou um absurdo o que fizeram comigo. Também vão achar um absurdo o que fizeram com o Márcio. Mas e daí? As punições são brandas, não acontece nada, ninguém leva a culpa. Vai seguir tudo igual."
A sua descrença ao Zero Hora tem razão de ser.
O futebol brasileiro é permissivo.
Aceita o preconceito racial.
O próprio Luiz Felipe Scolari, técnico da Seleção, errou feio.
Como técnico do Palmeiras tentou defender Danilo.
Disse que ofensas no gramado são normais, são coisas do jogo.
Não são.
Essa postura só estimula ainda mais o preconceito racial.
Em 2011, o meia do Inter, Zé Roberto, foi humilhado.
Vários torcedores do Grêmio imitavam macaco quando ele participava da jogada.
A diretoria exigiu punição.
Ela não veio.
Ainda foi lembrado que a mulher de Zé Roberto também era negra.
E acabou obrigada a entrar em um prédio em Porto Alegre pela porta de serviço.
Pela cor da sua pele.
Mas muita gente não aceita essa estúpida situação.
O árbitro Márcio Chagas prometeu que não vai abaixar a cabeça.
"Eu preenchi a súmula, eu vou fazer o boletim de ocorrência ainda, porque não consegui fazer ontem. Fiquei bem abalado emocionalmente e não consegui fazer naquele momento, queria voltar o mais rápido possível para minha residência. Vou entrar em contato com o sindicato dos árbitros, para ver qual procedimento adotar. E esperar o julgamento da Federação Gaúcha de Futebol a esse fato lamentável."
Ele chorou ao contar a situação para a RBS.
"Quando me deparei com meu veículo com as portas amassadas e bananas por cima… banana no cano de descarga, eu fiquei muito decepcionado por ser tratado dessa forma, já que vivemos numa cidade relativamente educada e evoluída. Eu pensei no meu filho. Pensei: "Eu vou dar um beijo no meu filho" e dizer "cara, para ti isso não vai acontecer porque isso é muito ruim, é muito ruim."
Só que ele mesmo sabe que o que passou não é inédito.
Há nove anos ouviu as mesmas ofensas.
Na partida entre Encantado e Caxias.
O então treinador do Encantado, Danilo Mior, não teve dúvidas.
Se aproveitou do clima contra Márcio.
"Negrão coitado", disparou.
Foi suspenso apenas por 60 dias.
Só que as ofensas racistas vindas das arquibancadas nunca cessaram.
"Isso sempre acontece na Serra Gaúcha. É muito difícil trabalhar lá."
Márcio revela que pensou em abandonar a carreira de árbitro.
O que aconteceu na noite de quarta-feira foi além dos seus limites.
Pensava só no Brasil racista que seu filho Miguel de dez anos vai encontrar.
A diretoria do Esportivo de Bento Gonçalves tomou uma providência.
Não, não descobriu quem colocou as bananas.
E nem quem teve fácil acesso ao carro do árbitro no estacionamento.
Soltou uma nota oficial dizendo que o juiz alegou ter recebido ofensas racistas.
Garantiu que vai investigar e ser contra qualquer atitude de racismo.
É assinada pelo seu presidente Luis Delano Lucchese Oselame.
A direção sabe que o clube deverá pagar pelos atos absurdos.
Mas a punição maior que o Esportivo pode sofrer é ridícula.
Branda demais.
O que só estimula novos atos racistas.
"Estou esperando ser publicada a súmula, ver o que consta na súmula. Mas o que consta na imprensa já dá indícios para denunciar o clube no artigo 243-g parágrafo 1º do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, sobre racismo. Quando praticada por um considerado número de pessoas, o clube pode perder os pontos de uma vitória, nesse caso, os três pontos da partida. Vou pedir isso."
Três pontos...
É o máximo que o procurador Alberto Franco poderá conseguir.
Assim decreta o CBJD.
Talvez se os torcedores racistas tivessem dado uma surra...
Ou feito coisa pior com o árbitro a pena fosse maior.
A mãe de todas esse atos repugnantes é a impunidade.
O futebol brasileiro continua tão hipócrita quanto no início do século passado.
Quando jogadores negros eram obrigados a colorir a pele com pó de arroz.
Tentar fingir ser brancos para poder entrar em campo.
Dilma Rousseff se disse chocada com o que aconteceu com Tinga no Peru.
Prometeu a Copa contra o Racismo.
Mas não tem a menor ideia do que se passa por aqui.
Ou os gritos de macacos para Márcio e Arouca são os únicos?
O Carnaval acabou há apenas três dias, o melhor talvez seja relaxar.
Lembrar de uma marchinha que resume bem a situação do Brasil.
Foi composta em 1931 por Lamartine Babo.
Vale o seu primeiro refrão, o mais lembrado.
Que foi muito cantado ainda este ano pelos blocos no país todo.
"O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor."
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor."
Todos cantam felizes sem pensar.
Sem avaliar.
Só porque a cor 'não pega' que o sujeito quer o amor da mulata.
Lamartine Babo talvez fez muito mais.
Foi um compositor compulsivo.
Escreveu os hinos de Flamengo, Vasco, Botafogo, Fluminense e América, Bangu.
Em uma estranha ironia misturou alegria, preconceito e futebol.
Resumo bem feito do nosso país.
Tirar três pontos do Esportivo por toda a humilhação feita a Marcio Chagas...
Será mais um tapa na cara da sociedade brasileira.
Só mais um.
Perfil
Cosme Rímoli
www.r7.com/cosmerimoli
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